Joel Pinheiro da Fonseca publicou na Folha da última terça-feira (07) um dos artigos pró-aborto mais intelectualmente desonestos que já li. Intitulado “A descriminalização do aborto“, ele se resume basicamente a 5 pontos:

1. São Tomás de Aquino considerava que, “embora o feto fosse um ser vivo desde o início, ele só se tornava um ser humano após 40 dias”
2. Se “mais de um terço dos embriões morrem naturalmente por falhas no processo de nidação, por que mulheres que procuram um aborto são tratadas como assassinas?”
3. “Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto 2016, quase 20% das mulheres brasileiras que chegam aos 40 anos realizou ao menos um aborto.”
4. “Descriminalizar o aborto não é defender sua prática ”
5. “Você pode ser contra o aborto e, ainda assim, não querer jogar as mulheres que o praticam na prisão.”

Resolvi então analisar cada ponto para mostrar a desonestidade intelectual dos argumentos utilizados por Joel, os mesmos utilizados pela militância pró-aborto. Vamos lá.

1. A visão de São Tomás de Aquino sobre o aborto
Tomás de Aquino distinguia aborto natural (espontâneo) do voluntário (induzido). No primeiro, por ser natural, não residia o problema. No segundo, Tomás de Aquino NÃO defendia o aborto, pelo contrário, o considerava um assassinato. O fato da “alma aderir ao corpo aos 40 dias” (isso para homens, no caso das mulheres essa “adesão da alma acontecia com 80 dias”, segundo Aquino) não justificava o assassinato do feto. Ele ia além: condenava inclusive o “veneno da esterilidade”, ou seja, produtos que impedissem a mulher de engravidar, como as atuais pílulas anticoncepcionais, pílulas do dia seguinte e afins. Para Aquino, o que “fere a mulher grávida faz algo ilícito, e, por esta razão, se disso resulta a morte da mulher ou do feto animado, não se desculpa do crime de homicídio, sobretudo, quando a morte segue certamente a esta ação violenta”.
Joel preferiu usar um artigo desonesto da Superinteressante como “fonte” ao invés de pesquisar mais a fundo a defesa de Aquino. Cinco minutos no Google teriam evitado o erro.

Réplica do Joel: no post originalmente publicado no meu perfil pessoal, Joel deixou um comentário, boa parte dele ad hominem (ataque ao autor e não aos argumentos), mas do qual é possível aproveitar o seguinte trecho: “Quando Tomás de Aquino fala do ‘feto animado’, é justamente o feto que já recebeu a alma racional. Ou seja, o que já é humano. Antes disso, como eu falo no artigo, interromper a gravidez já é pecado mas não é assassinato. Nisso ele seguia a própria lei canônica da época, que distinguia entre aborto antes e depois do feto ser “animado”. Só era assassinato depois de receber a alma, embora em ambos os casos fosse pecado grave.
Enfim, não existe polêmica nessa questão. É só se informar. Recomendo esse sumário da história do tratamento do aborto no pensamento da Igreja.”

Minha tréplica: há conflito de versões e relativa controvérsia sobre a visão de Tomás de Aquino relacionada ao tema. Sinceramente, o tratamento da Igreja e de Aquino sobre a questão me é irrelevante, e creio que deve ser irrelevante para a definição legal do aborto. Mas não deixa de ser curioso notar que a visão de um filósofo católico do Século XIII é considerada relevante quando ela pode favorecer a visão pró-aborto, mas toda a visão atual da Igreja contra o aborto é convenientemente ignorada.

2. Se “mais de um terço dos embriões morrem naturalmente por falhas no processo de nidação, por que mulheres que procuram um aborto são tratadas como assassinas?”
Há aqui uma grande falácia de falsa simetria. Primeiro, é perfeitamente possível (eu, por exemplo, tenho esta visão) defender que a vida deve ser protegia a partir da nidação (quando o óvulo fecundado se implanta na parede do útero e começa a se desenvolver) e não da fecundação. Mas isso não tem qualquer relação com tratar as mulheres que abortam como assassinas.

O teste de gravidez, geralmente, é realizado após 2-3 semanas da fecundação (ou seja, dias depois da nidação), quando a menstruação atrasa. Logo, a nidação já ocorreu quando a mulher descobre que está grávida. Ainda que você considere que a vida deve ser protegida desde a nidação e não a partir da fecundação, todo aborto provocado continuará sendo assassinato.

No mais, há um grande número de abortos espontâneos (96,3 mil em 2017, vide vídeo abaixo) e nem por isso os abortos provocados, vulgo assassinatos, devem ser legalizados. Seria como dizer que homicídios dolosos (quando há intenção de matar) devem ser legalizados porque há homicídios culposos (sem intenção de matar).

 

3. “Segundo a Pesquisa Nacional de Aborto 2016, quase 20% das mulheres brasileiras que chegam aos 40 anos realizou ao menos um aborto.”
Esta é uma grande farsa, uma das maiores ditas pelos defensores da legalização do aborto. A “Pesquisa Nacional do Aborto 2016” (PNA 2016) é uma pesquisa de opinião, feita com 2 mil mulheres, para estimar quantas fizeram um aborto. A pesquisa foi coordenada pela ONG pró-aborto ANIS, a mesma que apoia a ADPF 442 do PSOL que busca legalizar o aborto até a 12ª semana de gestação, foi financiada pelo Ministério da Saúde (que nunca forneceu os dados do contrato e quanto foi gasto na pesquisa) e pelo Fundo Elas (que é pró-aborto e tem como financiadores a ONU e a Open Society Foundations de George Soros).

Além do óbvio viés pró-aborto da PNA 2016, há uma fonte de informação muito melhor, oficial e baseada em dados fornecidos por hospitais e certidões de óbito, que é o DataSUS. Então por que o autor (e a militância pró-aborto em geral) preferem utilizar a PNA 2016? Porque ela favorece o argumento de que há “500 mil abortos por ano”, “1 em cada 5 mulheres fez um aborto” e afins, enquanto o DataSUS mostra que o número de internações por “outras gravidezes que terminam em aborto” (o que pode incluir tanto abortos espontâneos quanto induzidos) foi de 104,4 mil em 2017. Ainda que haja subnotificação, o que ninguém ignora, ela certamente não faria o número de abortos ser 400% maior como a PNA 2016 tenta apontar. No mais, a ADPF 442 busca legalizar o aborto até a 12ª semana e a PNA 2016, em momento algum, questiona em que momento da gestação foi feito o aborto. Ou seja: mais uma mentira.

E piora. Há tantos indícios de que a PNA é manipulada que sua divulgação se limitou a um artigo de 7 páginas. Sim, 7 páginas pautam toda a mídia brasileira. As informações básicas de toda pesquisa séria (metodologia completa incluindo forma de composição da amostragem, questionário completo, microdados para avaliação independente) nunca foram disponibilizadas. A própria versão 2010 do estudo (cuja versão 2016 possui a mesma estrutura, segundo o próprio artigo) admite, em sua página 4, que “apesar da redação utilizada ter como objetivo a captação do aborto induzido, é possível que tenha captado também abortos espontâneos. Enunciados alternativos, mais incisivos na identificação da indução, foram avaliados nos pré-testes e descartados”. Por que será que as versões de enunciados que identificavam o aborto induzido mais claramente foram descartadas? Seria por que elas gerariam dados que não interessariam à militância pró-aborto da ONG que coordenou a pesquisa?

Trecho da PNA 2010, página 4: enunciados que identificavam o aborto induzido mais claramente foram descartados. Por que será?

No mais, discussões sobre questões que afetam milhões de pessoas (incluindo milhares de vidas assassinadas por ano), como o aborto, devem ser baseadas em dados oficiais como os do DataSUS (obtidos de milhares de hospitais e certidões de óbito), não em meras pesquisas de opinião.

4. “Descriminalizar o aborto não é defender sua prática”.

Este é um sofisma muito comum dos militantes pró-aborto. E falso também. Dado o caráter universal do SUS, descriminalizar o aborto, ou seja, legalizá-lo, significa automaticamente defender que o aborto seja oferecido no Sistema Único de Saúde de todo o país (e pago por milhões de pagadores de impostos).

Em diversos países onde o aborto foi legalizado (Uruguai, por exemplo), o número de abortos aumentou em relação ao número de nascidos vivos. Como o médico obstetra Dr. Raphael Câmara bem afirmou na audiência pública do STF sobre o tema (vídeo abaixo): “hoje já trabalhamos em verdadeiras masmorras no SUS, fazendo parto no corredor. Agora destinaremos ainda mais dinheiro e recursos para fazer abortos?”

 

5. “Você pode ser contra o aborto e, ainda assim, não querer jogar as mulheres que o praticam na prisão”.

Outra farsa. Das grandes. Um levantamento da Defensoria Pública do Rio de Janeiro, por exemplo, precisou buscar por 12 anos (2005 a 2017) os processos relacionados a abortos no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro para encontrar 42 rés pela prática. NENHUMA foi presa. ZERO. Como a pena mínima por aborto é de UM ANO, as mulheres processadas, ainda que venham a ser condenadas, não serão presas.

Dizer que toda mulher que pratica aborto vai presa é uma canalhice das grandes para militar pró-aborto.
Entretanto, ainda que houvesse 100 mulheres presas por ter realizado a prática, isso não justificaria a legalização do aborto, da mesma forma que a existência de homicídios, estupros, latrocínios e afins não justifica a legalização destes crimes que, assim como o aborto, vitimam os direitos à vida e a propriedade de terceiros.

Conclusão
O artigo de Joel Pinheiro da Fonseca possui todos os elementos típicos da argumentação pró-aborto: manipulação de dados, supressão de evidências, apelo a uma pesquisa pró-aborto em desfavor dos dados oficiais, etc. Mostrando que, às vezes, não é necessário ter os dois pés na esquerda para mentir com dados e colocar toda a desonestidade intelectual possível no papel. Um pé na esquerda já é suficiente.

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