Por Rodolfo Haas
Quando a quantidade de oxigênio transportada para os tecidos do corpo humano é insuficiente, eles entram em hipoxia. No momento em que o fluxo retorna, muitos tecidos entram em choque – essencial para a vida, o oxigênio então se mostra tóxico. É o que acontece em casos de enfarto, por exemplo.
Mas existem animais, de oito diferentes filos, que se utilizam de um mecanismo de defesa curioso: em situações extremas, eles aumentam a quantidade de antioxidantes em preparação para o pior. Assim, quando retornam da situação de estresse, não sofrem com a retomada de circulação oxigênio. Qual o segredo destes animais? E o que eles podem ensinar sobre o organismo humano?
Há exatos 30 anos, em 17 setembro de 1991, o biólogo Marcelo Hermes Lima observou uma primeira espécie animal que utiliza o Preparo para o Estresse Oxidativo (POS, na sigla em inglês) – era uma cobra de jardim do Canadá (Thamnophis parietalis), capaz de tolerar o congelamento de até 50% de seus líquidos corporais e também viver por até dois dias sem oxigênio.
Ao longo destas três décadas, ele se dedicou a identificar evidências de que este e muitos outros animais se utilizam de um mecanismo de antecipação ao estresse ambiental. Ao longo do caminho, criou toda uma linha de pesquisas que hoje está espalhada pelo mundo.
“Eu estava no pós-doutorado e alcancei o que daria origem à teoria, anos depois. É muito tempo de dedicação, de trabalho”, relembra o professor. “A inspiração, na época, estava ligada ao fato de que determinados animais suportam por muitas horas, ou mesmo dias, o congelamento do corpo [apenas os líquidos extracelulares] ou situações de hipóxia severa, quando há muito pouco oxigênio no ambiente para ser usado respiração”.
Ele prossegue: “tendo em vista que nos anos 90 se pesquisava o papel de antioxidantes exógenos na prevenção de danos oxidativos da isquemia e reperfusão, se imaginou que esses animais que suportam congelamento e descongelamento, assim como hipóxia e reoxigenação, poderiam ter um sistema de defesa antioxidante endógeno bem desenvolvido, de forma a ‘enfrentar’ os radicais livres”. Lembrando que, na época, os radicais livres eram considerados grandes “vilões” celulares.
O pesquisador então apresentou, em dezembro de 1990, uma proposta de pesquisa ao laboratório do biólogo Kenneth Storey, no Canadá, e no ano seguinte ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Os trabalhos se iniciaram em agosto de 1991.
“Nos dias em que os primeiros resultados foram aparecendo, não havia como crer nas observações, que mostravam aumento da atividade de catalase muscular de animais congelados vivos”, recorda. No dia que entraria para a história como o do nascimento da teoria do POS, o pesquisador chegou a anotar em seu caderno: “bad data”. Os resultados pareciam erados, de tão surpreendentes. Mas eles estavam corretos, por mais contraintuitivos que parecessem. Era preciso, então, explicá-los.
“Os métodos para controle de altas taxas de formação de radicais de oxigênio não eram claros. Trinta anos atrás, um pesquisador inventivo do meu laboratório encontrou uma forma de identificar como esse processo pode ocorrer nos chamados animais extremos”, relembra o professor Storey. “Utilizando vertebrados tolerantes ao congelamento, o doutor Marcelo Hermes Lima foi capaz de criar uma visão única, a teoria do POS”.
Desde então, lembra o biólogo canadense, “esse fenômeno foi demonstrado em uma miríade de animais vivendo em ambientes extremos em todo o globo, do Ártico aos trópicos. A pesquisa se espalhou por muitos laboratórios que hoje estudam o fenômeno”.
Centenas de estudos
Apoiado pelo resultado, Hermes Lima partiu de uma teoria inicial, a de que, diante da falta de oxigênio, esses seres produziam antioxidantes. Começou então a identificar novas espécies capazes de realizar esse processo, a testar suas reações e a comparar os resultados que encontrou. Ao longo desse longo e produtivo caminho, formou dezenas pesquisadores dentro da instituição onde leciona desde 1996, o Instituto de Biologia da Universidade de Brasília (UnB).
Hermes Lima tem graduação em Biologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mestrado e doutorado em Biofísica pela mesma entidade. O doutorado foi realizado com um orientador da Universidade de São Paulo (USP). Seu trabalho é de alta relevância: 7260 citações no Google Scholar.
Em 1998, mesmo ano em que nasceu seu filho, o professor publicou um trabalho pioneiro apontando uma tese comum para o fenômeno e o batizando de POS. Na época, o mecanismo havia sido identificado em apenas seis espécies animais.
Desde então, foram publicados em todo o mundo mais de 300 estudos. Em 29 países, de todos os continentes, existem grupos de pesquisadores dedicados a levar adiante a descoberta do brasileiro. “São pesquisadores renomados, de nível internacional. Em pouco tempo, trinta anos, essa semente foi plantada”, relata Juan Manuel Carvajalino Fernandez, professor e pesquisador da Universidad Colegio Mayor de Cundinamarca, de Bogotá, na Colômbia.
“Todos os animais que habitam a Terra passam por situações de estresse, variações de temperatura, de oxigênio, de salinidade, fatores abióticos que causam alterações na fisiologia”, explica Márcio Alberto Geihs, doutor em Fisiologia Animal Comparada pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). “A teoria do POS trabalha quais são os mecanismos bioquímicos, comportamentais, fisiológicos, que os animais realizam para lidar com essas situações. São alterações que podem ocorrer em poucas horas, ou ao longo de semanas ou até meses”.
A compreensão acerca da teoria do POS apresenta uma promissora repercussão filosófica no âmbito da bioética, no que se refere aos problemas médicos e ambientais, explica Luís Carlos Silva de Sousa, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB, Ceará). “A teoria explica como animais que vivem em ambientes extremos, que passam por ciclos naturais de oxigenação (hipóxia e re-oxigenação) apresentam um mecanismo de proteção contra a formação de excesso de radicais livres e lesões celulares”, explica ele.
“É fundamental considerar, neste contexto, que a licitude da ação moral pressupõe um adequado conhecimento científico: desvendar os segredos de regulação do sistema antioxidante permite avaliar o sucesso e os riscos no tratamento de cardiopatias (isquemia/reperfusão) e câncer, o que favorece imensamente o consentimento livre e esclarecido do paciente”.
Comprovação definitiva
A capacidade de preparar o organismo para resistir à falta de oxigênio, sem sequelas posteriores, já foi identificada em oito condições: anoxia, hipóxia, congelamento, desidratação severa, exposição ao ar em animais aquáticos, estresse hiposalino (em invertebrados aquáticos), estivação e hibernação em animais que não são mamíferos.
“A teoria permitiu tirar o dogma de que radicais livres eram totalmente ruins. Em ambientes extremos muitos animais os utilizam para sinalizar a aproximação de uma situação de estresse”, explica Fernandez.
Acontece, por exemplo, com peixes amazônicos que habitam lagos onde falta oxigênio à noite, com sapinhos que habitam lagos canadenses que ficam congelados parte do ano, ou com cobras que mantêm o corpo em estado de congelamento ou lagartas de uma espécie de borboleta que entram em estado de diapausa (hibernação dos insetos). São quase 100 espécies animais. Até onde as pesquisas alcançam neste momento, um único mamífero, o rato-toupeira-pelado, de Israel, comprovadamente faz POS. “É animal que vive em tuneis subterrâneos, com baixa oxigenação e elevadíssima concentração de CO2”, afirma Hermes Lima.
“A teoria do POS não é feita para um indivíduo. Ela se aplica a populações e visa avaliar alterações na fisiologia, na bioquímica, no comportamento desses animais que ocorreram por alterações genéticas induzidas por essas alterações abióticas”, explica Geihs.
Em maio deste ano, um estudo com mexilhões, desenvolvido pela equipe do professor Hermes Lima, identificou na natureza uma comprovação para a teoria do POS. Publicado na revista Estuarine, Coastal and Shelf Science, o trabalho descreve como uma espécie de mexilhão lida com a situação de estresse provocada pela maré baixa.
É mais um trabalho que atesta que o POS realmente acontece na natureza: a primeira comprovação foi registrada em 2020, com um estudo de um sapo da caatinga brasileira. “São sapinhos que se enterram nos leitos de rios secos e ficam em estivação por muitos meses até chover novamente – fazem POS quando enterrados”, relata o autor principal do estudo, Dr. Daniel Moreira. Sua tese de doutorado foi sobre esse tema, tendo sido premiada pela Universidade de Brasília em 2018.
Aplicações práticas
Mas qual é exatamente o mecanismo bioquímico do POS? Foi só nos últimos anos que o pesquisador chegou a uma resposta. E ela está na relação entre a produção de radicais livres e o sistema de defesa antioxidante.
Eles se balanceiam, mas durante o POS acontece um desequilíbrio: os organismos aumentam a produção de proteínas antioxidantes que protegem órgãos e tecidos contra o efeito tóxico do excesso de produção de radicais livres que se formam na hipóxia e também no momento em que o oxigênio volta a circular. Com um detalhe importante – ao contrário do que se pensava até o início deste século, raramente existem situações de ausência absoluta de oxigênio. O mais comum é a restrição, hipóxia, mesmo que severa.
A teoria tem possíveis aplicações práticas em seres humanos. Descobrir como espécies que atuam como pragas em plantações se utilizam do POS pode colaborar a encontrar formas de controlá-las. E entender o metabolismo do oxigênio nos seres vivos pode colaborar com questões médicas, como transplantes de órgãos, ou mesmo no envio de astronautas em hibernação para o espaço, ainda num futuro distante. As forças armadas dos Estados Unidos, inclusive, já cofinanciaram um estudo do professor Hermes Lima, junto com a Universidade do Alasca, com esquilos hibernantes.
Sobre os transplantes, já há estudos indicando que os aprendizados com as estratégias utilizadas por animais em situações de frio extremo podem ser úteis, caso sejam replicadas em pacientes – evitando, assim, os danos causados pelo retorno do oxigênio ao organismo. Além disso, muitos tipos de células cancerígenas fazem POS – evitar que elas realizem esse mecanismo pode ajudar a combater a doença.
Foi recentemente descoberto (em 2020) pela equipe brasileira a resposta de diversos animais ao estresse da radiação ultravioleta é por meio do POS. “É possível que o POS tenha aplicação em dermatologia, tendo em vista os efeitos potencialmente lesivos do ultravioleta na pele humana”, sustenta Hermes Lima.
Caminho promissor
“Por enquanto, o POS é ciência básica”, explica Fernandez. “Precisamos entender melhor o mecanismo molecular do POS e trabalhar nos desdobramentos das descobertas. Temos um longo caminho pela frente, um caminho bastante promissor”.
Conforme afirma o pesquisador Ronaldo Angelini, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), “o físico Richard Feynman uma vez definiu a ciência como um ‘processo de aprender sobre a natureza, no qual as ideias sobre o funcionamento desta mesma natureza (teorias) são medidas contra a observação’”.
Temos tendências para achar, inclusive dentro da academia, que teorias são enfadonhas, prossegue. “É realmente uma satisfação saber que é possível, dentro das nossas limitações, fazer teoria de alta qualidade no Brasil, como a teoria do POS desenvolvida pelo Marcelo Hermes Lima. Mais do que isto, ela já foi provada em laboratórios inúmeras vezes e agora também mostrada em organismos em condições naturais, nos ambientes em que vivem”.
De qualquer forma, finaliza ele, “temos um mecanismo de estratégia adaptativa de organismos que foi descrito no Brasil e que é corroborado por dados do mundo todo. E, definitivamente, isto não é pouca coisa”.
A “caça ao POS não para!”, declarou o Prof. Marcelo. Agora ele quer saber se o POS ocorre em animais extremamente primitivos: as esponjas marinhas. Logo teremos cenas dos próximos capítulos.
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