Cotas Raciais e a fraude na USP

Ao reconhecer a cor como um critério jurídico de diferenciação entre as pessoas, o Estado reforça o racismo. Aceitar que seres humanos de alguma forma diferem, em essência, pela tonalidade da sua pele, é se render a uma visão de mundo racista.

Desde o ano passado, acompanhamos centenas de denúncias de fraude no programa de cotas raciais das universidades públicas paulistas, especialmente na Universidade de São Paulo. Segundo o Jornal da USP, “a Comissão de Acompanhamento da Política de Inclusão [ah, a burocracia e seus comitês!] se reuniu este mês para analisar os resultados das sindicâncias que apuraram denúncias de fraude na autodeclaração de pertencimento ao grupo PPI – pretos, pardos e indígenas – do vestibular 2019 [“grupo PPI”, que nomenclatura mais segregacionista].

Foi aprovada a “instauração de processos administrativos nos casos em que não foi possível constatar a conformidade das características fenotípicas do aluno com a autodeclaração de PPI. Nos casos em que a sindicância observou evidentes traços fenotípicos do aluno PPI – como cor de pele, formato do nariz, cabelo e estrutura corporal–, as queixas deverão ser arquivadas [pois é, vivemos pra ver uma universidade instituir um “tribunal racial”].

Sobre as fraudes em si, é lamentável que a jovem elite intelectual do país já esteja recorrendo a esse tipo de expediente pra subir na vida. Em Marcos 8:36, Cristo nos alerta: “que adianta ao homem ganhar o mundo inteiro, se perder a sua alma”. Que esses estudantes trapaceiros não ganhem o mundo tão cedo e sejam exemplarmente punidos com uma didática expulsão.

Mas aproveitando o ensejo da burla – que de tão previsível, beirava a obviedade – o Boletim faz algumas considerações sobre a ideia das cotas raciais, ou seja, a reserva de vagas (ou a oferta de vantagem de qualquer natureza) para estudantes vestibulandos em razão de seus “traços fenotípicos [de preto, pardo ou índio], como cor de pele, formato do nariz, cabelo e estrutura corporal”:

  • Somos contra qualquer tipo de cota racial, por questão de princípio.
  • Contra qualquer distinção feita com base no tom de pele de uma pessoa.
  • E especialmente contra, quando essa discriminação é patrocinada pelo Estado.

Ao reconhecer a cor como um critério jurídico de diferenciação entre as pessoas, o Estado reforça o racismo. Aceitar que seres humanos de alguma forma diferem, em essência, pela tonalidade da sua pele, é se render a uma visão de mundo racista. Porque o primeiro passo para estabelecer uma hierarquia racial entre as pessoas, é admitir que elas são diferentes em função da sua aparência ou da sua ascendência.

Nós não admitimos isso.

Defendemos a igualdade formal. Defendemos um Estado que nunca olhe pra cor de pele de seus cidadãos – e um Estado que puna com rigor aqueles que caminham na contramão da humanidade e praticam a discriminação. Discriminar é “perceber diferenças”; discriminar é “separar por algum critério”; discriminar é “formar um grupo com característica comum, seja ela étnica, cultural, religiosa…”. Exatamente o que acontece no caso das cotas raciais: o uso de um critério arbitrário para separar pessoas que deveriam ser tratadas igualmente, os estudantes.

Exames vestibulares avaliam conhecimento e não envolvem atividades presenciais, como entrevistas. Portanto, eventual “preconceito do examinador” é neutralizado no processo e a cor de pele do estudante não interfere no resultado dos testes. O que realmente influencia o desempenho de um estudante nas provas (além do seu esforço pessoal, naturalmente) é a qualidade do ensino a que ele teve acesso. E via de regra, no Brasil, isso é um fator atrelado à renda, porque famílias mais ricas conseguem prover a seus filhos ensino básico privado, que é sensivelmente superior ao ensino público.

É fato incontroverso que o filho de um negro rico tem muito mais chances de ingressar em uma boa universidade que o filho de um branco pobre. Justiça seja feita, as universidades que adotam “políticas de inclusão” [que ao incluir uns, excluem outros!], tem se esforçado para evitar beneficiar apenas elite negra. No caso da USP, “a reserva para alunos oriundos de escolas públicas é de 45%.

Nessa reserva incide o porcentual de 37,5% das vagas para candidatos autodeclarados pretos, pardos e indígenas, índice equivalente à proporção desses grupos no Estado de São Paulo, segundo o último censo do IBGE.” Contudo, como responder a esta incômoda questão: por que o negro pobre tem mais direito de acesso à universidade que o branco pobre?

O sistema de cotas raciais fere um princípio consagrado no artigo 5º da Constituição: “todos são iguais perante a Lei, sem distinção de qualquer natureza”. Alguém em sã consciência consegue sustentar que discriminar por tom de pele não configura uma “distinção”? E da pior “natureza”? Nós, enquanto sociedade, precisamos buscar soluções justas e fraternas para os problemas, não sair violando direitos constitucionais de jovens esforçados. Num sistema tão escasso de oportunidades, pra cada estudante beneficiado com a cota racial, existe um outro que foi prejudicado simplesmente pelo tom da sua pele (embora tenha tido desempenho melhor). Não é justo.

Mas justificativas não faltam, especialmente aquela embasada no argumento sofista de uma suposta “dívida histórica” em razão do nosso vergonhoso passado escravocrata. Ninguém nega a tragédia que foi a escravidão do povo negro, mas faz sentido penalizar um jovem de hoje pela monstruosidade moral cometida há mais de 100 anos? Uma dívida (de verdade) têm devedores, valores e prazos bem definidos; não é um conceito abstrato, difuso, pulverizado socialmente e vigente por tempo indeterminado. A sociedade contemporânea não tem qualquer parte nessa dívida imaginária – muito menos um estudante em busca de conhecimento e formação.

E podemos ir um pouco além na reflexão. Políticas de cota racial são uma forma bem efetiva de causar divisão social e fomentar ressentimento entre as pessoas, estimulando a vitimização de minorias étnicas e o senso de que são credores de um Estado e de uma sociedade intencionalmente opressores.

E a quem pode interessar uma nação dividida? A lideranças populistas. Não à toa, a esquerda, quando esteve no governo (e enquanto assaltava o país), levou a política de cotas raciais não apenas para as universidades, mas também para o Serviço Público. E convenhamos que a cota em concurso público é ainda mais injusta, uma vez que o candidato já está graduado, com diploma na mão.

Uma sociedade forte depende de princípios sólidos, e a isonomia – a igualdade de todos perante a lei – é um dos valores mais importantes do Estado de direito. Temos que evitar ao máximo relativizar esse pilar da democracia e não cair na armadilha de incorrer em erros morais travestidos de “justiça social”.

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