Cuba aprova nova Constituição

Projeto que reconhece o papel do mercado e da propriedade privada, sem renunciar ao comunismo, será levado a um referendo em fevereiro

O Parlamento cubano aprovou neste sábado (22) o projeto consensual de uma nova Constituição, que reconhece o papel do mercado e da propriedade privada, sem renunciar ao comunismo como meta, e que será submetido a referendo em fevereiro.

O novo texto constitucional foi aprovado por unanimidade em uma sessão ordinária da Assembleia Nacional fechada à imprensa internacional, na presença do presidente Miguel Díaz-Canel e de seu antecessor, Raúl Castro, primeiro secretário do governista Partido Comunista (PCC, único), segundo edição on-line do jornal oficial “Granma”.

“Esta Constituição é uma expressão genuína do caráter democrático e participativo do nosso povo porque nasce dele, reúne seus sentimentos”, disse o secretário do Conselho de Estado, Homero Acosta, ao destacar o trabalho de consenso realizado pela comissão redatora.

Na sexta-feira (21), durante uma longa jornada, os parlamentares receberam uma explicação sobre as mudanças estratégicas, mas “sem retrocessos”, introduzidas ao texto original, após um processo de discussão popular, realizado entre agosto e novembro, com quase 9 milhões de pessoas.

Veja o que muda na nova Constituição:

  • Reconhecimento da propriedade privada e do enriquecimento individual – com limites;
  • Criação do cargo de primeiro-ministro para chefiar o governo;
  • Discriminação a pessoas LGBT passa a ser proibida;
  • Haverá um referendo para definir casamento civil entre pessoas do mesmo sexo;
  • Garantia de presunção de inocência e habeas corpus em processos criminais;
    Estado laico – definição não aparecia no texto antigo;
  • Estabelece a liberdade de imprensa, antes vinculada aos “fins da sociedade socialista”;
  • Determina 60 anos como idade máxima para o cargo de presidente da república;
    Mandato de cinco anos para o presidente, com direito a uma reeleição;
  • Cubanos poderão denunciar violação de direitos constitucionais cometidos pelo governo.

O que não muda:

  • Cuba continua um país comunista;
  • O Partido Comunista é o único reconhecido na ilha;
  • Economia planificada, embora haja reconhecimento ao mercado;
  • Somente o Estado detém posse das terras em Cuba;
  • Assembleia Nacional elege presidente e primeiro-ministro;
  • Meios de comunicação são de “propriedade socialista”, jamais privados;

Destino comunista

O texto restitui o comunismo como meta da sociedade cubana – o mesmo tinha sido eliminado no projeto inicial –, e o PCC como “força política” dirigente, que “orienta os esforços comuns na construção do socialismo e no avanço para a sociedade comunista”.

Esta restituição irritou a oposição, que começou a convocar a “um maciço e sonoro NÃO” para “fazer fracassar” a nova Constituição.

“Dizer que ‘só no socialismo e no comunismo o ser humano alcança sua dignidade plena’ é uma ofensa à inteligência e uma total cegueira aos 60 anos” da revolução, destacou a dissidente União Patriótica de Cuba (Unpacu), em texto enviado à AFP.

Mercado e propriedade privada

A Cuba de hoje é cada vez mais uma economia mista. Mais de 591.000 cubanos trabalham por “conta própria”, o que representa 13% da força de trabalho.

O projeto estabelece as bases para integrar diferentes atores econômicos, ao reconhecer o papel do mercado na economia socialista e a propriedade privada, assim como o investimento externo, como elementos complementares para o desenvolvimento do país.

Trata-se de um modelo “autóctone”, no qual o Estado socialista mantém “as rédeas da economia”, disse Acosta.

Em uma sociedade até agora igualitária, a nova Constituição permitirá a geração de riqueza privada, que será regulamentada mediante um rígido sistema fiscal, mas evitará mediante leis a concentração da propriedade.

Cuba está aberta a abrigar milionários, sobretudo a partir da assinatura recente de um acordo que permite aos jogadores de beisebol cubanos que moram fora da ilha firmarem contratos com as Grandes Ligas dos Estados Unidos pela primeira vez em 60 anos.

Solução salomônica

Quanto ao polêmico tema do casamento entre pessoas de mesmo sexo, ao qual o projeto original abria o caminho, e que se deparou com o repúdio da população, a comissão de redação encontrou uma fórmula salomônica.

Agora reformulado no artigo 82 (antes era o 68), o texto reconhece o casamento “como uma instituição social e jurídica” e não como “a união entre duas pessoas”, que substituiria o termo vigente “entre um homem e uma mulher”.

Esta fórmula “dá resposta a todos”, admitiu Acosta.

Para a deputada Mariela Castro, filha de Raúl Castro e principal promotora da iniciativa a favor das minorias sexuais, “não há retrocessos”, pois a nova escrita ampara “as uniões de fato, sem atá-las a gênero algum”.

O tema do casamento homossexual fica agora nas mãos do Código da Família, cuja reforma, segundo Mariela, deverá “garantir o casamento (…) como uma instituição plural e inclusiva”, e será levada a referendo em no máximo dois anos.

Mandato presidencial

Outro artigo que encontrou oposição é o que limita o mandato presidencial a dois períodos de cinco anos, em caso de reeleição, e a uma idade máxima de 60 anos para iniciá-lo.

Fidel Castro foi presidente dos Conselhos de Estado e de Ministros entre 1976 e 2008. Seu irmão, Raúl, chefe de Estado entre 2008 e 2018, foi quem propôs limitar o mandato.

No entanto, um número considerável de opiniões recolhidas aponta a permitir a reeleição enquanto tiver apoio popular, sem limite de idade.

Por fim, a eleição do governante se mantém como é, ou seja, é eleito pelo Parlamento, mas ele ou ela será presidente da República por dois mandatos de cinco anos, se for reeleito ou reeleita. Será criada, ainda, a figura do primeiro-ministro.

Após sua aprovação no Parlamento, o projeto será submetido a referendo em 24 de fevereiro.

Cuba em 2018

Apesar de a Constituição em vigor ter passado por alterações desde sua adoção em 1976, é a primeira vez que o regime cubano organiza uma reforma completa no texto. A proposta, inclusive, foi vista com surpresa quando anunciada em meados de 2018.

Constituição cubana é ‘mensagem política’ com ‘repercussões incertas’

À época, o professor de relações internacionais Maurício Santoro, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), apontou em julho quatro prováveis fatores que levaram Cuba a fazer essa mudança:

Colapso econômico na Venezuela, aliada econômica de Cuba por causa do petróleo mais barato;

Governo “imprevisível” de Donald Trump nos Estados Unidos, eleito em 2016;

Baixo crescimento econômico nos demais países da América Latina nesta década;

Derrocada de políticos de esquerda nas eleições latino-americanas, mais “amigáveis”, segundo Santoro, ao regime cubano.

O regime de Cuba também colocou pela primeira vez um civil no cargo máximo do poder desde 1959, ano da revolução.

Miguel Díaz-Canel foi escolhido em abril pela Assembleia Nacional para substituir Raúl Castro – este, por sua vez, coordenou os debates da nova Constituição.

Porém, assim como as mudanças na constituição não significam, necessariamente, uma transformação no regime, a eleição de Díaz-Canel mantém o poder do Partido Comunista de Cuba (PCC).

O novo presidente faz parte do mesmo partido dos antecessores, e não abriu mão de exaltar a “revolução” nos discursos.

As relações de Cuba com o mundo pouco mudaram com a chegada de Díaz-Canel. O cubano visitou, neste ano, países da Ásia considerados comunistas: Coreia do Norte, Laos e Vietnã.

Ele também criticou Donald Trump, mas se encontrou com opositores do presidente norte-americano além de visitar o país para reuniões com grandes empresas de tecnologia.

Em relação ao Brasil, Díaz-Canel retirou Cuba do Mais Médicos após o programa receber críticas do presidente eleito Jair Bolsonaro.

O brasileiro respondeu que o cubano não aceitou as exigências para a continuidade do programa, como teste de capacidade e salário integral aos médicos estrangeiros. O futuro governo também desconvidou Díaz-Canel da cerimônia de posse de Bolsonaro.

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