A Arábia Saudita considera “preocupante” e “desagradável” o plano do presidente Jair Bolsonaro (PSL) de transferir a embaixada do Brasil em Israel para Jerusalém. Os sauditas avaliam que o ato, se concretizado, pode “encorajar outros países a seguir o mesmo caminho”, algo classificado como “alarmante” por um alto funcionário da diplomacia do país árabe.
Os termos constam em um telegrama diplomático sigiloso obtido pela Folha, no qual o embaixador do Brasil em Riad, Flavio Marega, relata uma reunião mantida no último dia 21 com o subsecretário para Assuntos Internacionais do Ministério dos Negócios Estrangeiros saudita, Abdulrahman bin Ibrahim Al-Rassi.
O documento, classificado como reservado e que portanto só se tornará público em 2024, deixa clara a oposição das autoridades sauditas à intenção do governo brasileiro de mudar a embaixada de Tel Aviv para Jerusalém.
“O Subsecretário [Al-Rassi] declarou, então, que será ‘unpleasant’ [desagradável] para a Arábia Saudita se o Brasil decidir transferir a embaixada para Jerusalém, por se tratar de um país amigo com quem o Reino completou 50 anos de relações diplomáticas em 2018”, relata Marega no telegrama.
“[Al-Rassi] Argumentou que o Brasil é diferente dos países ocidentais pela liderança que exerce e pelo exemplo que dá junto aos países em desenvolvimento, desde a criação do Movimento Não Alinhado e do G-77; e que se estendeu ao longo de décadas nas demais organizações internacionais. Assim, o movimento do Brasil de mudança da embaixada poderia encorajar outros países a seguir o mesmo caminho, o que [Al-Rassi] classificou como alarmante. Por fim, pediu que transmitisse às autoridades em Brasília a preocupação (‘concern’) do governo saudita diante da possível mudança”, afirma o diplomata brasileiro no documento.
Promessa de campanha de Bolsonaro, a realocação da missão diplomática brasileira para Jerusalém significaria um respaldo às ambições de Israel de ter a cidade reconhecida como sua capital.
Também marcaria o rompimento da posição que o Brasil adotou até então: a de que o status final de Jerusalém só deve ser definido após negociações de paz que assegurem a coexistência de dois Estados (Israel e Palestina). Os países árabes defendem que a porção oriental de Jerusalém seja a capital de um futuro Estado da Palestina.
Até o momento, apenas EUA e Guatemala estabeleceram suas embaixadas em Jerusalém. Os demais países, entre eles o Brasil, mantêm suas representações em Tel Aviv.
No telegrama, enviado ao Itamaraty com o selo de “urgente”, o embaixador Marega conta a seus superiores em Brasília que repassou ao funcionário da Arábia Saudita a orientação que recebeu do Ministério de Relações Exteriores do Brasil sobre a questão.
“Ao passar para o assunto principal da reunião, transmiti a meu interlocutor a po- sição do Brasil, com base nas instruções enviadas pela Sere [Secretaria de Estado das Relações Exteriores]: 1) o Brasil deseja manter a densidade que sempre caracterizou o nosso relacionamento com a Arábia Saudita, com o mundo árabe e outros países de maioria islâmica; 2) O Brasil mantém abrangentes agendas bilaterais com os 22 países árabes e a Liga dos Estados Árabes (LEA); 3) a amizade com Israel não é percebida pelo Brasil como um fator excludente da nossa sólida e a histórica amizade com os países árabes ou outros países de maioria islâmica; 4) as vantagens mútuas da parceria bilateral BrasilArábia Saudita”, escreve o embaixador brasileiro.
A mudança da embaixada para Jerusalém não é ponto pacífico dentro do governo. A ala militar que auxilia Bolsonaro já comunicou o presidente que o alinhamento do Brasil a Israel nesse tema pode resultar em represálias comerciais por parte dos países árabes, que são grandes compradores de proteína brasileira.
Existe também a preocupação de que, se tomar lado no histórico conflito que se arrasta há décadas no Oriente
Médio, o Brasil aumente sua exposição ao terrorismo internacional.
No início do mês, Bolsonaro minimizou, em entrevista ao SBT, os efeitos que sua promessa poderia gerar nas relações internacionais do Brasil. Ele disse também que cabe ao governo de Israel definir qual é a sua capital.
“Grande parte do mundo árabe está alinhada ou se alinhando com os Estados Unidos. Esta questão da Palestina já está se saturando, e quem se manifestou mais contra mim foi o Irã”, disse o presidente na entrevista.
O telegrama obtido pela Folha indica que a rejeição à transferência da embaixada, no mundo árabe, é mais ampla do que o caso mencionado pelo presidente na entrevista.
A reunião de Marega com Al-Rassi foi realizada um dia antes do anúncio do cancelamento de 33 frigoríficos brasileiros da lista dos exportadores de carne de frango para a Arábia Saudita.
Após o anúncio, especulouse que a medida poderia ser uma retaliação dos sauditas às intenções do Brasil de mudar a sua missão diplomática de Tel Aviv para Jerusalém.
Na quinta-feira (24), no entanto, o ministro da Economia e do Planejamento da Arábia Saudita, Mohammed Al Tuwaijri, disse à Folha , em Davos (Suíça), que a medida não tem relação com o tema da embaixada.
O telegrama diplomático também joga luz sobre um episódio ocorrido na cerimônia de posse de Bolsonaro, em 1º de janeiro. O subsecretário Al-Rassi conta que foi o enviado de Riad a Brasília para representar o governo saudita nas celebrações, mas não lhe foi permitido felicitar pessoalmente o presidente brasileiro.
“[Al-Rassi] lamentou não ter podido cumprimentar o presidente pessoalmente, mas disse entender o critério utilizado pelo cerimonial de limitar ao nível ministerial os cumprimentos. Não obstante, elogiou a cerimônia ocorrida no Palácio do Itamaraty na noite do dia 1º de janeiro, a qual caracterizou como ‘grande celebração’.”
A Folha pediu que o Ministério das Relações Exteriores comentasse o teor do documento, além de ter perguntado se outros diplomatas em países árabes receberam manifestações das autoridades locais expressando preocupação em relação à mudança da embaixada em Israel.
O Itamaraty também foi questionado sobre o critério usado pelo cerimonial da posse presidencial para definir as autoridades que puderam cumprimentar Bolsonaro na cerimônia.
A assessoria de imprensa do Itamaraty disse que, como o telegrama é reservado, não faria nenhum comentário “em respeito à Lei de Acesso à Informação”.
“O Ministério das Relações Exteriores não comentará teor de expediente classificado como reservado, obtido de maneira irregular e não autorizada” informou.
“A mudança poderia encorajar outros países a seguir o mesmo caminho, o que [Al-Rassi] classificou como alarmante Flavio Marega
Embaixador do Brasil em Riad, em telegrama