Sérgio Biscuola não sabe exatamente o que fazer com as mais de 300 fichas de inscrição que tem empilhadas em seu escritório no Clube Piratininga de Tiro, na Zona Sul de São Paulo. Diretor de um dos clubes de tiro mais tradicionais da cidade e com quase 50 anos de história, Biscuola vê os pedidos de associação se acumularem dia a dia. “Eu já nem sei o que fazer, não queremos mais sócios, não temos espaço físico para tanta gente que quer entrar no clube e também não queremos o perfil de muitos que estão chegando”, diz ele, também instrutor credenciado pela Polícia Federal e competidor internacional de tiro prático.
A demanda tem crescido de forma exponencial desde que o debate sobre as mudanças na legislação e a crise da violência urbana entraram na pauta do país com a ascensão do presidente eleito Jair Bolsonaro no cenário político nacional. “Ao contrário do perfil que temos aqui no clube, que em geral são esportistas, passamos a ver o cidadão que acredita que uma arma vai resolver seu problema de segurança, o que na maior parte das vezes não é verdadeiro”, diz Biscuola.
Assim como toda a indústria de armas no Brasil, Biscuola sabe que esse é apenas o início de um movimento que tende a se expandir quando a legislação brasileira for alterada. E para quem acompanha o assunto não há dúvidas: dificilmente ela não será alterada – e em breve. Mesmo com posições antagônicas, defensores da legislação atual e partidários de que o Brasil deve liberalizar a posse e o porte de armas concordam que mudanças na lei serão inevitáveis.
“Nós continuaremos lutando para que essa tragédia de querer armar as pessoas não ocorra, mas está claro que alguma modificação irá ocorrer”, diz Felippe Angeli, assessor do Instituto Sou da Paz.
“Estamos com a expectativa de levar o projeto ao plenário no primeiro semestre”, diz o deputado Rogério Peninha (MDB-SC), autor do Projeto de Lei 3722, que tramita na Câmara desde 2012 e já foi aprovado em todas as comissões da casa.
Impacto desconhecido
O que ninguém sabe ainda é o real impacto que uma mudança na lei terá no mercado brasileiro de armas e munições. Nenhuma entidade, nenhum especialista no assunto, nem mesmo as empresas que atuam no setor, arriscam estimar o volume de armas legais que devem entrar circulação quando o Estatuto do Desarmamento, em vigor desde 2003, for, na prática, derrubado.
“Esse é um cálculo muito difícil de fazer, não há como mensurar isso agora, mas com certeza há uma demanda reprimida”, diz o consultor Fabrício Rebelo, que auxiliou o deputado Peninha na elaboração do PL 3722. “Eu imagino que haverá mais impacto quando o monopólio da Taurus cair do que com uma mudança profunda na legislação. Arma ainda é um item muito caro para o brasileiro”, diz Rebelo. Uma pistola semi-automática é vendida em média por R$ 6 mil, e um revólver, por aproximadamente metade desse valor. Os custos para registrar a arma variam entre R$ 1,5 mil e R$ 2 mil.
Mesmo com a restritiva legislação atual, que praticamente impede qualquer cidadão que não esteja ligado às forças de segurança de andar armado, as vendas têm crescido de forma estável e contínua ano a ano, em especial entre a população civil. Dados da Polícia Federal mostram que o registro de armas de fogo para pessoas físicas pulou de cerca de 3 mil unidades em 2004 para 33 mil no ano passado. Hoje, tanto a PF quanto o Exército, também responsável pelo registro e fiscalização de armas de fogo no país, calculam que existam 646 mil armas de fogo em situação legal circulando no país, mais da metade delas nas mãos de civis. Até 2003, havia mais de 8 milhões de armas legais no país.
Boa parte desse imenso volume continua existindo, mas na ilegalidade. “As pesquisas de opinião mostram que, apesar de a maior parte dos brasileiros apoiar uma liberalização maior, nem todos pensam em ter uma arma, e elas ainda são muito caras. Não sei se é possível fazer uma estimativa de que tamanho esse mercado terá”, diz Angelli. “Mas é claro que haverá um impacto na indústria.”
A Taurus, a única empresa que de fato produz e vende armas de fogo em larga escala no Brasil, já vem sentindo esses impactos. Favorecida pelas regras atuais, que impedem a importação de produtos similares produzidos por ela, a empresa viu sua receita no mercado interno saltar mais de 50% no acumulado dos nove primeiros meses deste ano em comparação com o mesmo período do ano passado.
Com a vitória de Bolsonaro e a expectativa de um crescimento na busca por armas de fogo com uma legislação menos restritiva, as ações da companhia gaúcha, tanto as preferenciais quanto as ordinárias, registraram uma valorização de quase 80% entre o segundo e o terceiro trimestres deste ano. Ainda assim, o mercado brasileiro segue sendo periférico para a Taurus, respondendo por menos de 20% de seu faturamento no acumulado dos nove meses do ano. A maior parte das vendas ocorre nos Estados Unidos, onde a empresa mantém uma unidade produtiva em Miami, em vias de transferência para o estado da Geórgia.
Com o afrouxamento das regras, a tendência natural é que os negócios no Brasil avancem. Uma estimativa feita pela ONG Small Arms Survey, ligada ao Instituto de Altos Estudos e Desenvolvimento de Genebra, na Suíça, mostra o mercado potencial que um país das dimensões brasileiras poderia ter. De acordo com o levantamento, existem 8,8 armas nas mãos de cada grupo de 100 civis no Brasil. Nos Estados Unidos, o primeiro do ranking, esse número é de impressionantes 123 armas para cada 100 habitantes.
Assim, não é à toa que um número crescente de empresas estrangeiras vem anunciando que pretende instalar fábricas no Brasil. Companhias como a americana Sig Sauer, a tcheca CZ e a Caracal, dos Emirados Árabes Unidos, já anunciaram que têm planos de se instalar no país. “O problema é que, além da impossibilidade de importação, o governo exige que essas empresas utilizem um percentual específico de produtos nacionais para cada produto, o que dificulta ainda mais sua operação”, diz Rebelo. “Isso mantém os preços altos e desestimula a competição.”
Leis mais radicais a favor da liberalização
Alheio a esse debate, o deputado Peninha estuda agora reapresentar seu projeto de lei apenas em 2019. Ele decidiu abandonar a ideia de tentar aprová-lo na esteira da vitória de Bolsonaro por entender que pode avançar na liberalização das armas de forma ainda mais radical do que agora. “Pretendo levar a votação uma proposta muito parecida com a original, como apresentei em 2012”, diz. Ao longo dos anos, o PL 3722 foi sendo alterado pelas comissões por onde passou, e propostas como a liberação do porte de armas para maiores de 21 anos e indivíduos condenados por crimes não dolosos chocaram aqueles que são a favor do Estatuto do Desarmamento.
“A proposta dele pretende permitir que qualquer um ande armado, é um absurdo”, diz Angeli, do Sou da Paz. Peninha já até havia aceitado rever temas como esse no passado, mas agora está confiante de que conseguirá aprovar até mesmo as partes mais polêmicas. “Um motorista que, sem querer, atropela um pedestre, por que razão precisa ser proibido de comprar uma arma para defender sua vida, sua família, seu patrimônio”, questiona o parlamentar, que se reelegeu como o 11º mais votado por Santa Catarina.
A julgar pelo perfil do novo Congresso, que toma posse em fevereiro, Peninha de fato vai ter mais facilidade em conseguir que propostas como essa sejam aprovadas. De acordo com um levantamento do site Congresso em Foco, a chamada Bancada da Bala, composta por parlamentares claramente favoráveis a um afrouxamento da legislação, triplicou de tamanho. Se até agora havia cerca de 30 deputados claramente alinhados com a indústria de armas, na próxima legislatura serão mais de cem. No Senado, a bancada saiu de zero para 18.
Biscuola não acredita que armas por si só possam resolver o problema da segurança pública ou do cidadão comum que pretende se proteger de ladrões determinados a invadir sua casa. “Se você não estiver preparado, a arma pode se voltar contra você”, afirma o instrutor de tiro. Mesmo explicando para muitas pessoas que o procuram que, na sua visão, as armas não são a solução por si só, o número de clientes para seus cursos de tiro não para de crescer – não há mais vagas em suas turmas até março de 2019. Para o ano que vem ele planeja inaugurar seu próprio clube de tiro em Jundiaí. “É um investimento de R$ 4 milhões, mas o meu perfil será voltado para o tiro esportivo”, diz. Os negócios, como se vê, vão bem. Para ele e para toda a indústria das armas.